sexta-feira, 22 de maio de 2009

Delícia de maldade

por Luiz Carlos Santos

O enredo bobo de “O diabo veste Prada” é apenas um pano de fundo sem graça para o desfile de um elenco talentoso, liderado por Meryl Streep. É por causa dela que vale a pena aturar as lições de moral da roteirista Aline Brosh McKenner (Leis da Atração), que transformou Andrea “Andy” Sachs (Anne Hathaway) numa pós-adolescente tardia que, em plena Nova York do século XXI, tem sonhos de contos de fada que deixam a Cinderela no chinelo

Não me entendam mal: o idealismo da moça é louvável, mas tão exagerado que ela, presumidamente inteligente, não sabe aproveitar a grande oportunidade que cai em suas mãos para, a partir daí, poder construir uma promissora carreira. A história já conhecemos: Andy é uma recém-formada jornalista do interior que decide tentar a sorte na maior cidade dos Estados Unidos. Tem amigos divertidos – e muito estereotipados – e um namorado devotado. Veste-se extremamente mal, embora, no filme, ela se classifique como “casual”.

Esse estilo despojado, ou a total falta de um, é logo aniquilado por Miranda Priestly, nada menos que a editora executiva da Runaway, a revista de moda mais importante do mundo, temida pelo cargo que ocupa e, mais ainda, pela dura personalidade, coisas que podem acabar com a nova coleção de qualquer estilista. Andy fica cara a cara com a megera numa entrevista de emprego – e logo é colocada devidamente no seu lugar.

As desventuras da repórter aspirante a escritora são uma espécie de biografia da jornalista Lauren Weisberger, ou antes dos meses em que trabalhou com a chefe suprema da Vogue americana, Anna Wintour. Os bastidores dessa relação, como quase tudo que acontece nos Estados Unidos, viraram livro que, novamente na América, é sempre material para um filme.

Quando Meryl Streep aparece, começa o verdadeiro desfile do filme. Por mais injustas que sejam as atitudes da maligna editora, não vemos a hora de ela voltar à tela para nos divertir. Com gestos meticulosamente construídos, a atriz passeia toda vez que aparece, compondo uma daquelas bruxas que adoramos adorar. Ela confere a Miranda tanta competência e expertise em seu ofício que seus meneios e humilhações, embora nos causem indignação, soam plausíveis, e não é qualquer um que conseguiria esse efeito.

A composição da fascinante personagem transcende o roteiro fraco. Mesmo com o apelo sentimentalóide – que tenta humanizar o “diabo” –, a atriz não deixa o momento representar um desleixo da sua personalidade. A ausência de sorrisos durante todo o filme, exceto quando Miranda usa os treinados para situações-chave, revela ao espectador mais atento uma tristeza profunda, tornando a malvada editora um ser de carne e osso, por quem acabamos sentindo afeição.


Ser má, para ela, é apenas cobrar tarefas que seus funcionários, por total incompetência, não conseguiram realizar. Ao dirigir a palavra a alguém, ela nunca altera o tom de voz. Mantém-se austera e sóbria sem demonstrar qualquer emoção, enquanto exige que sua assistente encontre aquele papelzinho que ela usara um dia antes e que contém uma informação fundamental.

O filme, porém, é previsível e cheio de clichês, com lições de auto-ajuda descartáveis e a fórmula de comédias românticas bobas. É salvo mesmo pelas atuações. Os coadjuvantes também são divertidíssimos. Emily Blunt, que faz a primeira assistente, e Stancley Tucci, uma espécie de produtor da revista, encarnam na medida certa o tom debochado que permeia os bastidores de uma indústria que é um mistério para muitos. Sempre com um ar arrogante e irônico, eles nunca resvalam na caricatura. Com tudo para odiá-los, acabamos simpatizando com eles.

“O diabo veste Prada” tem outro mérito, ao apresentar um argumento convincente sobre a importância do mundo da moda, embora não se aprofunde em desvendar mais mistérios desse fascinante universo. Faz, aliás, uma reverência a um cenário que, em geral, é tratado com ironia e sem importância, como algo fútil, embora milionário. O melhor momento do filme é exatamente quando Miranda, em poucos segundos, explica à recém-contratada Andy que o suéter mirrado que ela está usando já foi, um dia, uma peça apresentada num dos desfiles e sessões de fotos que ela tanto esnoba.


Hathaway também faz um bom trabalho ao mostrar a evolução de sua personagem, que, mesmo tendo resgatado os “valores morais” colocados como contraponto à maldade do diabo, não é a mesma do começo do filme. O banho de loja que a moça recebe a cobre não só de roupas, mas também do verniz que reluz em todos os que se envolvem com o mundo da moda, dadas suas devidas proporções.

Seu ego faz um vai-e-vem dentro do dilema exposto no filme, o que se revela bom para ela. E, justiça seja feita, Andy sempre cativa, esteja mal vestida e desajeitada, esteja deslumbrante em sapatos Gucci. Ponto para moça, que não é apagada em nenhum momento pela monstruosa presença de Meryl Streep. Detalhe também para o figurino de Patricia Field, indicado ao Oscar, cheio de referências a peças clássicas de grandes estilistas. É um espetáculo!

O diabo veste Prada

The devil wears Prada, EUA, 2006

Comédia, 109 min.

De David Frankel

Com Meryl Streep, Anne Hathaway, Emily Blunt, Adrian Garner, Stanley Tucci.


3 comentários:

lidiane disse...

Não sou cinéfila, tampouco "fashionista",
mas tô adorando esses artigos sobre moda/cinema.
Quero mais!

Luiz Carlos disse...

Oi, Lidiane, a ideia é aproximar mesmo esses dois universos tão fascinantes e que tanto têm em comum. Estou fazendo uma pesquisa de filmes que possam ganhar essa abordagem e vou sugerir pro site textos dentro do tema. Obrigado pelo comentário!

lidiane disse...

eeeeeba! vou aguardar.
;)